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Nesta semana, estava assistindo um filme, e me deparei com a seguinte cena: Um magico, vestido de fraque capa e cartola, se posta no meio de um salão enfeitado de balões coloridos. Diante dele, vários pares de olhinhos ansiosos observam cada um de seus movimentos. É uma festa de aniversário infantil, e as crianças na plateia não se esforçam pra esconder sua excitação, balançando o corpo de um lado pro outro enquanto cochicham e apontam para o tablado. Em cima dele, o magico sorri calmamente, esperando o bom momento pra começar sua performance. As grandes luzes se apagam. Os únicos feixes que iluminam o salão agora estão apontados para o homem de capa. O entusiasmo dos pequenos se materializa em uma profusão de gritinhos agudos. O mágico tira a cartola da cabeça e, sem dizer uma palavra, começa a mostrá-la as crianças sob diferentes ângulos. Um lado, o outro, a parte da frente, a parte de trás, a parte de cima, a parte de baixo. Ele vira a abertura para o chão e da dois ligeiros tapinhas na parte superior do chapéu. Nada cai de dentro dele. A cartola está vazia. Um silêncio sepulcral agora paira. Os olhinhos infantis estão mais atentos que nunca, fixos, completamente vidrados. O magico levanta uma sobrancelha e sorri um sorriso provocador. Ele começa, então, a fazer vários movimentos rápidos e fluidos com as mãos em torno da abertura do chapéu. Luvas brancas velejam, deslizam, quase dançam ao redor da cartola. O homem agita os dedos várias vezes e faz um movimento brusco, como quem lança um punhado de pó imaginário. Bocas ligeiramente abertas, as crianças prendem a respiração. O magico faz uma última pausa de dois segundos antes de enfiar a mão na cartola, chacoalha-la com suavidade e tirar de dentro dela uma pomba branca, que agita as asinhas docemente, como se tivesse acabado de despertar de uma soneca. A plateia mirim vai ao delírio. Os olhinhos agora parecem querer saltar das orbitas de tão arregalados. Os suspiros de assombro, surpresa e admiração são fortes e veem seguidos de guinchos incrédulos e palminhas extasiadas que inundam o cômodo. Depois desse cenário que meus olhos foram testemunhas, fiquei com várias questões na minha cabeça, e quero as dividir. Tudo que aquelas crianças sabem até aquele momento a respeito do mundo em que vivem diz a elas que o que acabaram de presenciar simplesmente não é possível. Seu conhecimento sobre as leis que governam nossa realidade lhes sussurra que pombas não se materializam desse jeito dentro de cartolas, e elas viram a cartola vazia com seus próprios olhos agorinha mesmo. Não pode ser! Mas, ainda assim, de algum jeito, é, e elas simplesmente aceitam esse fato. Não há razão para procurar qualquer explicação que seja; As crianças possuem uma facilidade extraordinária para consentir alegremente diante do inexplicável. Assim, o que esses pequeninos acabaram de testemunhar é pura e simples mágica, na sua forma mais fiel e verdadeira.
O homem de capa, no entanto, embora orgulhoso da habilidade que se empenhou tanto pra desenvolver, não vê nada de mágico naquela performance, porque entende perfeitamente como ela funciona. Ele sabe muito bem que todas as leis que governam o nosso universo continuam intactas, e que a cartola tem um pequeno fundo falso onde ele colocou a pobre pomba poucos minutos antes de subir no palco. Para ele, não existe nenhuma lacuna de ordem lógica entre os acontecimentos. Tudo aquilo é apenas um truque muito bem ensaiado. Quando pensamos dessa forma, não soa um pouco triste a vida do mágico? Não parece melancolicamente paradoxal que, por compreender em demasia a sua mágica, ele jamais seja capaz de experienciar o verdadeiro maravilhamento que ela causa nos inocentes? Não me entenda mal: O conhecimento é algo formidável, e eu jamais ousaria dizer o contrário. É claro que faz parte da vida abandonar a inocência e começar progressivamente a ser capaz de entender melhor o mundo em que vivemos. No entanto, a verdade é que compreender é também renunciar. Quando compreendemos, abrimos mão da capacidade de não compreender; Renunciamos automaticamente à habilidade de perceber a realidade como percebíamos antes de passar a saber. Enquanto adultos bem ajustados, todos sabemos (Ou deveríamos saber) que a "Mágica", de forma objetiva, já está quase extinta. A maioria dos fenômenos que nos circundam são perfeitamente explicáveis através da lógica, da razão e da ciência. Isso não significa necessariamente que sabemos explicá-los todos, mas sabemos que alguém sabe.
Vou citar outro exemplo. Quando chove e faz sol ao mesmo tempo, um arco multicolorido surge subitamente no céu. Assim, entendo que a existência do arco- íris não tem nada a ver com mágica, porque não há magia no que pode ser explicado racionalmente, por mais que a explicação me seja pessoalmente desconhecida. No entanto, existiu um tempo em que as pessoas nada sabiam sobre a física por trás desse fenômeno; Ele era um mistério absoluto. Você já teve a grande sorte e privilégio de testemunhar um arco- íris resplandecendo orgulhoso em toda a sua pompa e glória sobre um campo aberto, ou do alto de uma colina? Se não, há uma coisa que posso te garantir: Não é como na cidade. Nos grandes centros urbanos, as altas edificações raramente permitem que você de fato enxergue um arco inteiro, na verdade. Na maioria das vezes, o que se pode observar são só pequenas seções do arco, porque sempre tem um prédio, outdoor ou poste bloqueando a vista, por mais que você estique bem o pescoço pra fora da janela do seu apartamento, o fenômeno já é fabuloso mesmo diante de uma paisagem de concreto, mas, quando contemplado num ambiente natural e sem obstrução, torna-se inconcebível. É, de fato, quase impossível admitir a existência da imagem que nossos olhos estão registrando, tamanha a sua magnificência. Estar de alguma forma em contato com o irreal, com aquilo que "Não pode ser", é uma necessidade fundamental da espécie humana. Nós achamos a fantasia o máximo. Até usamos os mesmos adjetivos na linguagem do dia a dia pra nos referir, ao mesmo tempo, àquilo que é inventado e àquilo que é muito bom. A palavra "Fantástico", por exemplo, designa, algo que é excelente, prodigioso, fora do comum, extraordinário; E também algo que não tem veracidade, que é inventado, que só existe na imaginação. O mesmo ocorre com "Fabuloso", que usamos como sinônimo de "Ótimo", mas que significa também aquilo diz respeito à fábula, à narrativa inventada. Não é exagero, então, dizer que os seres humanos acham o fantástico fabuloso e o fabuloso fantástico.
Ao meu ver, diante de todas essas minhas reflexões, há três coisas que estão relacionadas, a ciência, a mágica e a poesia. Como a compreendemos hoje, a poesia, está intimamente relacionada ao desejo humano de dar forma e significado às experiências subjetivas, internas. Nela, o impulso que motiva a criar é a busca por compreender, sublimar e comunicar a influência do universo que nos envolve sobre nossa alma, sobre aquilo que temos de mais essencial e profundo. A poesia oferece uma lente especial para ver o mundo, uma perspectiva que ultrapassa as barreiras da comunicação pragmática. Assim, a "Realidade" da poesia é muito, muito distante da nossa realidade literal e objetiva. É nesse universo que vive o poeta. A realidade dele é uma realidade percebida, é a sua própria interpretação da realidade, e ela pode ser livremente reinventada. Não há limites nem regras para o poeta: Ele tem carta branca para brincar com imagens, símbolos e coisas que representam outras coisas. Se quiser, ele pode fragmentar o mundo e reorganizar seus cacos sob a forma de um belo mosaico, ou espalhá-los de forma desordenada e incompreensível. Ao poeta, é permitido fazer da realidade o que julgar justo. Dessa forma, não parece intrínseca e vital a sua habilidade de enxergar e se nutrir da existência do fantástico, do fabuloso? É da própria natureza do poeta a sua relação com o inexplicável. Ele observa com curiosidade e aprecia tudo aquilo que é misterioso. No entanto, ele não volta seus olhos para o mistério com a ânsia de descobrir suas causas e razões segundo as leis do mundo objetivo em que vivemos, mas de criar, de imaginar, de tecer divagações segundo as possibilidades do seu próprio mundo, um mundo onde não há leis, há apenas mágica. O poeta depende da exploração de seu universo interior, e esse universo não segue as mesmas regras do nosso universo objetivo, sobretudo porque não segue regra nenhuma. Assim, se considerarmos essa concepção de poesia que a aproxima da magia, pois a mágica pertence ao reino do que não temos conhecimento suficiente para explicar com base nas leis que regem o universo; Já a ciência existe para fornecer a explicação precisa segundo as mesmas leis. A ideia de que a ciência e a poesia são completa e irremediavelmente opostas é, na melhor das hipóteses, ingênua. A qualidade essencial que aproxima esses dois grupos de indivíduos é justamente a imaginação, a capacidade de fantasiar, de ver além do que está posto. O cientista é, também, um sonhador. Ele observa a realidade ao seu redor e precisa imaginar, supor, criar hipóteses pra como ela funciona.
No entanto, é muito claro também que, apesar de partilharem muitas similaridades, os objetivos dos cientistas e dos poetas não são parecidos. Ambos observam o mundo com um olhar atento, curioso e maravilhado, ávidos para compreendê-lo, é fato; Mas eles têm uma ideia bastante diferente da função do ato de "Compreender". A frase que estou prestes a escrever parecerá redundante e óbvia à primeira leitura, mas tente refletir sobre ela alguns segundos: Os cientistas querem compreender o mundo de maneira científica, e os poetas querem compreender o mundo de maneira poética. Se você parar pra pensar, é simples assim. Tomemos como exemplo as estrelas, um tema de grande interesse para ambos os grupos. O cientista quer compreendê-las para catalogá-las, descobrir sua posição, sua idade, sua distância em relação à terra, sua origem, sua razão. O poeta quer compreendê-las para ouvi-las, para tornar-se amigo e confidentes delas. De maneira mais clara: Os cientistas buscam compreender os fenômenos naturais, descobrir padrões e desenvolver teorias que possam explicar e prever eventos futuros, com um foco direcionado para fora, em direção ao mundo objetivo. Os poetas, ao contrário, procuram atribuir significado à experiência humana, explorar emoções, e expressar a complexidade da vida interior; Sua atenção está voltada para dentro, para as profundezas da subjetividade. Além disso, os dois grupos diferem fundamentalmente a respeito do juízo de valor que fazem do desconhecido, que é matéria de trabalho de ambos. Os cientistas, ao enfrentarem o incerto e o inexplicável, buscam respostas por meio da pesquisa e da análise crítica, porque querem justamente diminuir a incerteza. Os poetas, por outro lado, costumam gostar muito dela. Diminuí-la pra que? Eles querem mesmo é abraçar a incerteza, tomar um café com ela, se maravilhar diante do mistério sem a intenção de resolvê-lo, admirar a ambiguidade sem querer desambiguá-la.
Acredito que há muitas coisas que acontece ao nosso redor, que por trás delas se escondem um pouco de mágica, um pouco de poesia, porque a mágica e a poesia confortam a alma, e eu não acho que seja vergonhoso precisar de conforto. Sim, sou uma mulher adulta e plenamente consciente de que grande parte dos mistérios que envolvem o mundo foram solucionados, e que o conhecimento que a humanidade possui graças ao desenvolvimento da ciência é inestimável. E sou também alguém que se empenha de maneira consciente para, apesar de tudo isso, atribuir mágica àquelas coisas do meu cotidiano que "Não são mágica, são ciência". na minha vida pessoal e sem fazer mal a ninguém, admito que obrigo a ciência a se calar às vezes. "Você só pode ir até aqui", eu digo a ela, mesmo consciente de que, na realidade, ela já foi muito mais longe. Eu não quero saber. "A partir daqui, na minha realidade, tudo é mágica". Quando falo de mágica nesse contexto silencioso que se desenrola dentro da minha mente, não falo de curas inexplicáveis, nem de feitiços, nem de deuses, ninfas ou duendes, nem de telecinese, nem de pães que se multiplicam, nem de superpoderes, nem de fenômenos paranormais. Falo da pequena e discreta mágica da vida de todos os dias, sempre presente, ainda que silenciosa. A vida já é, em si, uma experiência suficientemente dura e desprovida de propósito intrínseco. Sem a crença na magia, o que me restaria? Quando chove e faz sol ao mesmo tempo, surge no céu um arco multicolorido, e isso é mágico. As árvores ficam completamente secas no inverno e seria possível presumi-las mortas; Mas as folhas que caíram nascem todas novamente quando a primavera chega, e isso é mágico. Às vezes sonhamos com alguém com quem não falamos há muito tempo e essa pessoa nos liga pouco depois, e isso é mágico. Uma mulher gesta uma criança dentro do seu ventre e a traz ao mundo, e isso é mágico. Em algum momento da história, unimos sons e conceitos para criar palavras capazes de explicar a realidade ao nosso redor e a realidade dentro do nosso coração, e se isso não é absolutamente mágico, eu não sei o que é.

      .(Inicio da escrita dia 16/07/2024 ás 15:37).      .(Fim da escrita dia 21/07/2024, ás 14:49).


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